É fato que as tecnologias digitais têm diversas vantagens para a modernidade, como a facilidade de comunicação, a desburocratização de processos e o aprimoramento da habilidade de efetuar tarefas simultâneas. No entanto, tudo em excesso causa malefícios. É o caso da dependência do meio digital, que se refere ao uso excessivo de computadores e aparelhos celulares com intenção de permanecer sempre conectado à rede virtual.
Em casos mais graves, o uso pode ser patológico e relacionado com o vício em jogos eletrônicos e redes sociais. Esse uso abusivo tem reflexo na vida pessoal, social e profissional da pessoa, como:
- Dificuldades de concentração por grandes períodos;
- Sedentarismo;
- Sono desregulado;
- Prejuízo à socialização face a face e ao desenvolvimento de habilidades emocionais;
- Uso perigoso do anonimato;
- Proliferação de discursos de ódio;
- Cyberbullying;
- Ansiedade;
- Depressão;
- E outros.
Logo, por ser uma questão tão ligada à saúde mental, é essencial discutir o assunto. Mas, afinal, como isso ocorre dentro do contexto brasileiro?
A dependência digital é um drama dos tempos modernos e está presente, mesmo que em graus diferentes, em praticamente todos os países. Um estudo de 2019, realizado pelo Programa de Doutorado em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo 1, apontou que 1 em cada 4 adolescentes brasileiros é dependente da Internet. Entre uma das razões pelas quais os jovens brasileiros estão tão dependentes do mundo virtual, de acordo com os especialistas, está a relação com fase da vida em que estão vivendo, como a adolescência, período em que os jovens sentem necessidade de aprovação e de reforçar a própria imagens e, talvez por isso, muitas pessoas que não conseguem a “tão sonhada” popularidade nos ambientes de convivência, se estabelecem nas redes sociais.
Nos parágrafos a seguir, vamos avaliar melhor os riscos que crianças e jovens podem enfrentar com uma exposição intensa às telas e como a pandemia do covid-19 afetou os casos de dependência do mundo virtual.
O uso excessivo de telas em questão para crianças e jovens
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, diversas pesquisas têm revelado aumento dos riscos à saúde de crianças e adolescentes por causa do uso excessivo de telas, especialmente em relação ao desenvolvimento de problemas comportamentais. Por isso, existe um incentivo aos pais a limitarem o acesso aos aparelhos conforme a faixa etária.2
- Até dois anos: o ideal é que a criança não tenha contato com mídias digitais;
- Entre dois e cinco anos: limitar o contato ao máximo uma hora por dia;
- Entre seis e 10 anos: recomenda-se o uso de mídias digitais por no máximo duas horas por dia, sempre com supervisão;
- Entre 11 e 18 anos: a recomendação é restringir a duas ou três horas, com supervisão.
Um dos problemas mais recorrentes do uso excessivo de telas ocorre na visão. A oftalmologista pediátrica Gabriela Eckert, membro da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (SPRS), afirma que aumentou muito o número de casos de crianças desenvolvendo ou aumentando o grau de miopia nesse período de isolamento. Ela explica que, para enxergar aquilo que está mais perto, há maior esforço acomodativo, o que significa mais força para focar a visão. A médica chama a atenção para o que significa aumentar o grau da miopia.
Esse aumento (da miopia) tem relação principalmente com o uso de telas pequenas, como celular, tablet e computador. Não tanto a TV, porque a visão é um pouco mais de longe. O problema também está relacionado a um menor contato com a luminosidade dos ambientes externos. Quanto mais alto o grau de miopia, mais chance tem de haver descolamento de retina no futuro, de degeneração miópica, que são causas da perda de visão. A miopia costuma aumentar na adolescência, e hoje a gente está vendo isso nas crianças menores.
Gabriela Eckert, oftalmologista pedriátrica.
Ainda que seja uma tarefa complexa impor limites para os filhos, é um cuidado que precisa ser adotado. O pediatra Renato Santos Coelho recomenda que os pais busquem alternativas de entretenimento pensando, por exemplo, no que faziam em suas infâncias: brincar com bola, papel, lápis, tinta, giz de cera, massinha de modelar, quebra-cabeças etc.
Outra preocupação é quanto ao conteúdo acessado. Por isso a orientação da supervisão e da implementação de filtros de segurança para evitar que os jovens acabem sendo expostos a conteúdos de violência, abusos, exploração sexual, pornografia etc.
Home office e a relação com a dependência digital
É fato que o mundo em constante evolução exige nova maneira de encarar o trabalho. Em 2020, ano marcado pela quarentena e pela interrupção de diversos trabalhos manuais, o home office surgiu como uma necessidade para uns e oportunidade para outros. A relação homem-internet se tornou cada vez mais próxima, e a dependência virtual uma realidade atual em diversas situações.
Segundo o psicólogo Alexander Bez, Especialista em Relacionamentos, Ansiedade e Síndrome do Pânico3, é preciso diferenciar apenas uma necessidade de mexer no celular com a obrigatoriedade. O médico acrescentou que a pandemia trouxe aspectos diferentes para a psicologia e a psiquiatria neste ano, já que ao mesmo tempo em que não temos outra opção segura para trabalhar a não ser estar conectado, ela também pode ser prejudicial. Mas é importante avaliar pensando além da situação da Covid-19.
Do mesmo jeito que você é obrigado a lavar as mãos constantemente, você também é obrigado a mexer no celular constantemente, até pela sensação de proximidade, mas tirando a pandemia, se você tiver um grau de dependência maior do que a questão pandêmica, significa que você realmente tem uma compulsão.
Alexander Bez, especialista em Relacionamentos, Ansiedade e Síndrome do Pânico.
Especificamente na atual situação de pandemia, o médico confessa que é de fato complicado separar o uso em excesso da necessidade obrigatória, formando uma linha tênue entre as duas. As redes sociais são um exemplo, já que o uso padronizado e repetitivo dos sites pode gerar transtornos obsessivos, porém ela também é responsável pela aproximação de famílias e amigos em situação de quarentena, se tornando um meio para socializar, mesmo que virtualmente.
Diante disso, o médico dá algumas dicas para que as pessoas consigam agir e lidar naturalmente diante do uso diário da tecnologia, como aumentar “o espaço entre uma vista e outra no celular, desde que não tenha nenhuma obrigatoriedade sua em ver” e “pontuar as necessidades profissionais das necessidades pessoais”.
Repertório Sociocultural
Autores e obras
- Pierre Lévy, filósofo e sociólogo contemporâneo, estudioso do impacto do mundo virtual na sociedade (obra “Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea”): reflexões sobre a cibercultura, o ciberespaço, a ciberdemocracia e a exclusão, o papel do professor na educação,virtual etc;
- Massimo Recalcati, psicanalista italiano, na obra “O homem sem inconsciente” (2010), trata de como as redes sociais podem se configurar como uma espécie de nova droga extremamente viciante, cuja ausência acarreta sintomas muito parecidos com crises de abstinência e aponta para a dificuldade do sujeito de lidar com o desamparo;
- Heidegger, já na obra “Ser e Tempo” (1927), abordava a ideia de que a tecnologia ameaçava tirar do homem a sua capacidade de refletir sobre as coisas e poderia transformá-lo em um ser que produz, muitas vezes, de maneira irrefletida;
Fatos históricos
- Terceira Revolução Industrial (Revolução Técnico-Científica Informacional);
- Quarta Revolução Industrial;
- Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs);
Filmes, séries e documentários
- “Black Mirror”, da Netflix, cujos episódios parecem não somente tratar de um futuro tecnológico distópico, mas de um presente que já se delineia;
- “Os Estagiários”;
- “Banking on Bitcoin”;
- “Eis os delírios do mundo conectado”;
- “Dark Net”;
- “O Dilema das Redes”.
Possíveis propostas de intervenção
- Ministério da Educação, junto às Secretarias Estaduais e Municipais, deve promover cursos e palestras nas escolas de todo o país, orientando alunos, famílias e educadores a lidarem de forma saudável com as tecnologias digitais;
- Ministério da Saúde deve capacitar constantemente profissionais como psicólogos e psiquiatras para tratamento dos pacientes com vícios digitais, ampliando a rede de atendimento;
Citações para redação
O vício nas telas avança silenciosamente.
Adam Alter, psicólogo | Frase dita em um entrevista ao jornal El País, 25 de abril de 2018. 4
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.
Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro. 5
A comunicação que se estabelece é só da tela para a criança. Da criança para a tela não há resposta. Não há interação.
Renato Santos Coelho, membro do Comitê de Desenvolvimento e Comportamento Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (SPRS).6