A automedicação é o consumo de remédios sem orientação adequada de profissionais da saúde – o uso é por conta própria. Apesar de problemático, o hábito é bastante comum no Brasil, onde cerca de 77% da população se automedica, segundo a pesquisa feita pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF)1. Dentre as causas do uso indiscriminado, estão a banalização de informações, o sucateamento do sistema de saúde e a rotina corrida de grande parte dos brasileiros.
A mídia também é um fator que influência bastante o uso indiscriminado de medicamentos, visto que, com o advento da Internet, a disseminação de notícias falsas é recorrente e a propaganda com os fármacos, que geralmente enfatizam os benefícios e minimizam as possíveis reações adversas e outros riscos, acaba sendo a única informação de referencial que o paciente tem acesso.2
A disseminação de informações falsas sobre medicamentos na pandemia
Não é uma novidade que os brasileiros têm dificuldade em reconhecer as fake news e em averiguar as fontes verdadeiras de informações recebidas pela Internet. Segundo a pesquisa desenvolvida pela Kasperksy, empresa global de cibersegurança, 62% dos brasileiros confiam fielmente no que circula na Web e nas redes sociais, como o Whatsapp e o Facebook.3 No que diz respeito à automedicação, não seria diferente, uma vez que o desespero social causado pela pandemia do Covid-19 fomentou a disseminação de pseudos métodos paliativos contra a doença e o uso de remédios sem a eficácia comprovada.
Entre os medicamentos que a mídia difundiu amplamente no Brasil durante a pandemia, estão aqueles que fazem parte do chamado ”Kit-Covid” como a ivermectina (antiparasitário), a hidroxicloroquina (anitmalárico), a azitromicina (antibiótico indicado para o tratamento de infecções respiratórias) e a cloroquina. Distribuir o medicamento virou uma política de governo, com atos dos Ministérios da Saúde, Defesa, Economia, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia. Envolve desde a orientação técnica para o uso até o fornecimento final da substância, passando por isenções de impostos e facilitações na circulação do produto. Os medicamentos, sem eficácia comprovada para Covid-19 conforme experimentos feitos até agora, foram enviados principalmente a Norte e Nordeste. As informações sobre esses medicamentos viralizam e são amplamente difundidos nas redes sociais, garantindo assim, mais adeptos ao ”Kit-Covid”, como mostra a pesquisa do 4
No entanto, as consequências do uso indiscriminado podem ser irreversíveis. O infectologista Unaí Tupinambás adverte que a indicação da Ivermectina para tratar verminose é em dose única. “A gente nunca a usou por mais de um dia. Agora, pessoas estão usando por quatro dias, a cada 15 dias. Não sei se essa dose acumulada pode ter efeito, muito menos contra Covid. As pessoas precisam ter mais calma, escutar mais a ciência e os dados da literatura médica”.O especialista reforça que usar medicamento sem indicação comprovada é um risco a mais de complicação da doença. Esses medicamentos podem ter efeitos colaterais que, inclusive, podem levar quem os consome para o hospital. Em casos clínicos mais graves, o uso desses remédios pode levar, inclusive, ao óbito, como foi o caso dos três pacientes que faleceram no Rio Grande do Sul em março de 2021, após a permissão médica de usar uma solução de hidroxicloroquina como nebulizador. 5.
Ainda no mês de março de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que alguns medicamentos não fossem usados como prevenção da Covid-19, uma vez que as complicações poderiam ser irreversíveis. A hidroxicloroquina foi prescrita por médicos brasileiros apesar de estudos científicos não apontarem benefícios e alertarem para riscos associados ao uso. O estudo intitulado “Solidarity Therapeutics Trial”, liderado pela OMS em mais de 30 países, apresentou como resultado científico que quatro antivirais utilizados contra a Covid-19 são ineficazes: remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir (combinação) e interferon beta-1a. Mesmo diante dos avisos, um levantamento do Conselho Federal de Farmácia mostrou que a venda do antimalárico nas farmácias mais que dobrou, passando de 963 mil em 2019 para 2 milhões de unidades em 2020.
“Dr. Google” e a sociedade do desempenho
Quem nunca sentiu algo diferente no próprio corpo e foi procurar a resposta no Google? Com a disponibilidade de encontrar respostas rápidas – mesmo que falsas – a procura de um profissional da saúde vêm se tornando, cada vez mais, uma segunda opção para muitas pessoas. Porém, a pesquisa da Universidade Edith Cowan, na Austrália, detectou que, ao pesquisar sintomas na plataforma, em apenas 36% das vezes o primeiro resultado da busca traz um diagnóstico correto6.
Para o filósofo Byung-Chul Han, a atualidade poder ser denominada como a época da sociedade de desempenho, que é acometida por uma patologia neuronal. O conceito caracteriza-se por uma sociedade em que seus habitantes são “empresários de si mesmo”, “sujeitos de desempenho e de produção”. Esse padrão sociológico requer um desenvolvimento pessoal alto, seja nos estudos, na profissão e na vida social, com a necessidade de uma vida cada vez mais ativa, há o esgotamento mental e físico. Se o tédio e a vida contemplativa nessa sociedade não têm espaço, muito menos o tem o descanso, e, para isso têm que se recorrer ao doping. Assim, se tornam corriqueiros o uso de medicamentos com vistas a se superar o esgotamento, o que faz com que muitas pessoas se automediquem de maneira irresponsável, como forma de garantir esse alto desempenho pessoal.7
Entre os medicamentos mais usados indiscriminadamente, o metilfenidato (conhecido popularmente como ritalina) se destaca no ambiente escolar. O medicamento vem sendo utilizado como a primeira opção no tratamento de TDAH, por muitos anos, porém, tem ganhado uma nova conotação: é a “droga dos vestibulandos”. Sobre o uso indiscriminado do medicamento, o médico Ricardo Campos afirma que a medicação não tem capacidade de turbinar cérebro, ou aumentar as capacidades mentais, e o seu uso pode gerar graves riscos como quadro de dependência, a supressão total do apetite, pressão alta, distúrbios de sono, ansiedade e depressão. O último dado do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, publicado pela Veja, revelou que o Brasil é o segundo maior consumidor de ritalina no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Além disso, entre 2004 e 2014 a importação do medicamento cresceu 373% e a maior disponibilidade provocou um aumento de 775% no consumo8.
Por que as pessoas acreditam em informações que viralizam no Whatsapp? Para o professor e escritor Michael Shermer, as pessoas acreditam porque faz parte da natureza humana procurar padrões, conexões de eventos, mesmo onde na verdade n ão existe nada. Além disso, ele explica que a verdade dificilmente é o único critério que faz uma ideia se manter ou se espalhar. As crenças persistem quando desempenham alguma função útil para o indivíduo ou para a sociedade que acredita nelas.
Complicações clínicas e socioeconômicas com o uso irresponsável de medicamentos
Mesmo com a comprovação científica sobre a ineficácia da cloroquina contra a Covid-19, o Ministério da Saúde desviou 2/3 do estoque de comprimidos do medicamento fabricado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) – usado principalmente, no combate à malária. O desvio de finalidade do medicamento deixou descoberto o programa nacional de controle da malária, com risco de desabastecimento da droga para esses pacientes a partir deste mês de março. O medicamento é a aposta da presidência no combate à pandemia desde o início da crise sanitária, há mais de um ano. Esse desvio, pode causar graves consequências, como a falta de medicamentos para doenças que realmente fazem parte do protocolo, assim como o endividamento público. 9.
As complicações clínicas do uso irresponsável de ivermectina, usado como ”tratamento precoce” também saíram do controle, uma vez que os efeitos colaterais podem causar lesões no fígado e hepatite aguda. O médico pneumologista, Frederico Fernandes, relatou que os casos de toxicidade da ivermectina são raros, mas o problema na pandemia é que ela passou a ser entendida como uma solução para um mal para o qual ela não foi indicada e não tem, até o momento, nenhuma comprovação científica de que funcione contra a Covid-19, explicou Fernandes em entrevista exclusiva ao Portal do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico.
Repertório Sociocultural
- Conceitos: Sociedade do Desempenho do sociólogo Byung-Chul Han;
- Documentários: Big Bucks, Big Pharma – 2006; O Abraço Corporativo – 2009; Take Your Pills – 2018;
- Filmes: Nightcrawler – 2014; Requiem for a Dream – 2000; SiCKO – 2007; The Machinist – 2004; Thank You for Smoking – 2006; The Constant Gardener – 2005;
- Músicas: Adorável Chip Novo – Pitty; Arrombou a Mídia – Rita Lee; Comfortably Numb – Pink Floyd; Dado Viciado – Legião Urbana; Fitter Happier – Radiohead; Geração Coca-Cola – Legião Urbana; Sem Saúde – Gabriel Pensador; The Drugs Don’t Work – The Verve;
- Obras Literárias: Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria – Zygmunt Bauman; Sociedade do cansaço – Byung-Chul Han. A Hora da Estrela – Clarice Lispector
Possíveis propostas de intervenção
- Fomento à divulgação sobre os perigos da automedicação;
- Aprimorar a estrutura de fiscalização às drogarias de todo o país
- Penalizar mídias que divulgarem notícias falsas sobre medicamentos;
- Dialogo sobre a pressão social de alto desempenho;
- Maior filtragem dos sites de buscas;
- Grade curricular do ensino básico com aulas sobre informação na Web;
Citações para redação
A mão que governa o jornal, o rádio, a tela e a revista disseminada ao longe, governa o país.
Learned Hand, juiz e filósofo judiciário, escrito em 1942 | Frase original: “The hand that rules the press, the radio, the screen and the far-spread magazine, rules the country whether we like it or not, we must learn to accept it.”. 10
Muita gente não vê problemas em tomar um remédio por conta própria, mas riscos da automedicação podem ser graves ou até fatais.
Anthony Wong, médico pediatra e toxicologista, escrito em 2011.11